Alegrias e desafios da maternidade LGBTQIA+
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Alegrias e desafios da maternidade LGBTQIA+

Entrevista com Marcela Tiboni, autora do livro "MAMA: um relato de maternidade homoafetiva".



G: Conta um pouco pra gente como foi a decisão de engravidar.


M: A decisão de engravidar foi simples porque desde que eu e a Mel nos conhecemos já sabíamos que queríamos ser mães. Tínhamos muitas dúvidas sobre quem engravidaria, quando e com o óvulo de quem. Mas em 2017 entendemos que tinha chegado o momento, pelos nossos desejos, idades, estabilidade que a gente almejava ter até a chegada dos nossos filhos... A gente já tinha, financeira, de trabalho, de casa, então não foi uma decisão difícil, mas envolveu muita pergunta e muita dúvida.


Desconhecíamos todo o processo clínico de reprodução assistida, não é um processo divulgado no mundo LGBT, a gente não sabia como seria recebido nas clínicas, como funcionava o banco de sêmen, a retirada de óvulos, criação do embrião, tempo. A Mel foi doadora de óvulos, então foi um caminho longo por desconhecer os métodos de reprodução assistida e por desconhecer esses métodos vinculados a um casal de mulheres lésbicas.


G: Quais foram os maiores desafios da maternidade homoafetiva para vocês?


M: Eu acho que a gente começou com um desafio gigantesco que foi o desconhecimento total da maternidade homoafetiva né?! Como é que duas mulheres fazem para ter filho nesse país, como é que funciona adoção, como é que funciona ultra solidário, como é que funciona uma inseminação caseira, uma inseminação, fertilização in vitro. A gente não tinha nenhum casal de amigas mulheres com filhos, a gente conhecia um casal que tinha acabado de ter uma criança. Não encontrava essas informações em lugar nenhum. Então acho que o primeiro desafio é a falta de informação. E isso é o que me faz, dentro do perfil e dentro dos livros que eu venho publicando, tentar tornar essa informação acessível a todas as pessoas.


O segundo desafio foram as leis do país, que são legislações bacanas, acho que é um país bastante progressista no sentido de proteção a população LGBT, mas muito pouco cumprida dentro dos órgãos necessários, dentro dos cartórios, Poupatempo, polícia federal e tudo mais. Então acho que esse desafio foi de fazer valer também os nossos direitos.


E o terceiro é a sociedade né?! O quanto as pessoas ainda estão com um olhar bastante fechado e homofobico, o quanto elas acreditam que mãe só tem uma, que não há espaço para duas mães, que se quem gestou e quem fez o embrião foi a Mel não tem espaço para minha maternidade.


G: Como foi escrever seu livro? O que mudou depois do lançamento?


M: O “Mama” eu digo que foi minha gestação, ele demorou 9 meses para ser escrito, começou no terceiro mês de gestação da Mel e terminou depois de três meses dos gêmeos nascidos. Ele surgiu porque eu fui numa livraria para comprar um livro sobre tema, ler, me acalmar e me encher de informação, e esse livro não existia. Me deu um incômodo e uma revolta pensar que eu estava em 2017 e não podia ler nada sobre o assunto.


Então quando de fato a gravidez deu certo, em 2019, eu decidi que eu escreveria isso no formato de relato, contando os meus sentimentos, as coisas que eu escutava, as inseguranças que eu vivia por ser uma mãe não gestante e como era uma maternidade ao lado de outra mulher. Como é que eram esses olhares e essas conversas que a gente tinha com as pessoas, com a família e tudo mais. Eu tinha uma despretensão enorme, eu lancei achando que iríamos fazer 100 cópias e fizemos 1.500 cópias nos dois lançamentos que fizemos e já vendemos mais de 300 livros. Foi uma surpresa porque as pessoas que compravam não eram só o público LGBT, eram profissionais da saúde, obstetrizes, doulas, pediatras... Então foi muito legal essa recepção e hoje ele me dá um retorno absurdo dentro do Instagram, impulsionou o meu perfil também e me dá uma estímulo para continuar dentro da literatura e da escrita.


G: Como foi o processo de indução à lactação? Conta tudo! Muita gente não sabe que essa possibilidade existe, né?


M: A indução à lactação era mais uma situação desconhecida por nós e eu acho que por 99% dos brasileiros. A gente tinha ouvido falar no assunto por um casal de mulheres que são a Mariana e a Júlia, que hoje são grandes amigas, elas tem gêmeos também, um ano mais velhos que os nossos. E a gente leu uma matéria com elas mas não ficou muito fixado e quando descobrimos que eram gêmeos e a Mel estava grávida de cinco meses ela perguntou se eu não toparia amamentar.


A gente encontrou a Kely Carvalho que é uma consultora de amamentação e nem sabíamos que essa profissão existia e para o que servia. Entramos em contato com ela na Lumos e a Kelly e toda a equipe (a Ana, a Thais…) toparam trabalhar comigo, nesse lugar de “sabemos que a indução pode dar certo mas a gente nunca fez e a gente não tem nenhuma garantia”. Então a gente trabalhou muito nesse lugar de “nem sabemos se vai dar certo” e deu.


A indução é muito simples. Eu na época tomava anticoncepcional um tempo para mexer com os níveis de progesterona, também da prolactina e estrogênio, depois parei e comecei a usar bomba de tirar leite e uma medicação que estimula e tem como efeito colateral a produção da prolactina. Com sete meses da gestação da Mel eu comecei a usar bomba e já comecei a produzir as primeiras gotas de leite quando meus filhos nasceram já tinha meio litro de leite congelado.


Muita gente me pergunta como é que era a divisão dos bebês, se cada um mamava em uma mãe, e não. Era uma divisão espacial, o bebê que estava mais perto chorando e a mãe que tivesse mais perto dele era quem ia amamentar, a noite e de dia. Então foi uma divisão de muita equidade na nossa maternidade, porque a gente dividia exatamente as tarefas iguais. O que uma fazia a outra também podia fazer da mesma maneira. Então foi muito bacana viver isso junto.


G: Como foi o acompanhamento da Doula durante a gestação e parto, ela trabalhou com as duas mães certo?


M: A nossa doula é a Érica, amo de paixão. A Érica foi fundamental nessa nossa gestação, para nos tranquilizar, para nos dar novos horizontes. Eu queria muito um parto normal, não foi possível. A gente fez tudo que podia, acupuntura, massagem, spinning babies, e não deu certo. Então foi uma cesária, a doula não pode estar junto na cesárea mas assim que eles nasceram liberaram a entrada dela. Ela ficou com a gente mais de uma hora na sala de parto auxiliando na amamentação, nos acalmando.


No dia do parto ela veio em casa, conversou, fez massagem na Mel, fez massagem em mim. Foi muito bonito esse acompanhamento das duas mães, da Mel como a mãe gestante e a mim como mãe não gestante, incluindo nesse processo todo de maternidade e também cuidando da minha indução à lactação.


G: O que te surpreendeu de forma positiva e o que te surpreendeu de forma negativa na maternidade?


M: De forma positiva foi o acolhimento de outras mães perante a minha maternidade. O quanto eu fui amparada por outras mulheres, hétero, trans e lésbicas não bináris. O quanto essas mulheres foram fundamentais dentro do nosso processo de mãe, pré-parto, mãe pós-parto com recém-nascidos, com as crianças até hoje. Acho que foi minha maior surpresa.


E a pior foi perceber como a área da saúde é preconceituosa e homofóbica, o tanto de preconceito e homofobia eu já vivi dentro de consultórios é assustador. Inclusive dentro do próprio hospital, a diretora do hospital não queria que eu amamentasse meus filhos dentro do território hospitalar pois ela dizia que era amamentação cruzada, quando uma mãe amamenta o filho de outra mulher. Ou seja, ela destituiu minha maternidade assim que meus filhos nasceram.


G: Conte mais alguma coisa sobre a sua maternidade e da Mel que sinta vontade de compartilhar com o público da Gestar.


M: Acho que a dupla maternidade tem muitos privilégios e muitos desafios. Um casal heteronormativo não se pergunta quem vai engravidar, a gente pode se fazer essa pergunta. Não se pergunta com o óvulo de quem, quando faz um processo clínico. A gente pode se perguntar. Não se pergunta quem vai amamentar, se são as duas, se é só uma, se é uma de cada vez, a gente pode se fazer todas essas perguntas e decidir isso de deliberar junto.


Mas eu acho que tem também várias outras situações que casais heteronormativos não vivem, por exemplo a gente viveu um duplo puerpério, onde vivemos esse momento do Baby Blues juntas e foi muito choro, muita depressão, muito incômodo neste momento e as duas juntas tendo que se amparar e tendo que viver isso tudo lado a lado.


E tem uma comparação também de que a mãe não se compara ao pai e a gente se comparava o tempo inteiro mãe com mãe. E isso foi desafiador assim, da gente perceber que a gente não tinha que se comparar, que era quase um processo orgânico nosso. Então a gente teve muito aprendizado ao longo desse processo. E tem sido lindo mas tem sido uma jornada bastante intensa.


G: Qual recado você mandaria para outras famílias que estão nessa fase de querer ter filhos?


M: Para todos os casais, mulheres, lésbicas, LGBT que estão querendo engravidar, vai para o Instagram. Tem muito perfil, muita informação, muita coisa bacana acontecendo e sendo debatida. Muitas personalidades grandes, Isabella Taviani, a Fabi do vôlei, a Cris do futebol, assumindo sua sexualidade e sua dupla maternidade nos seus perfis. Se você for na lupinha ali e digitar “duas mães”, você vai encontrar uma série de perfis incríveis sobre dupla maternidade, vai encontrar muito assunto bacana, muita gente disposta a conversar e a dialogar. Então siga em frente, busque essa rede de apoio, busque essas informações que o mundo está cada vez mais diverso e acolhedor.


Essa foi a entrevista com a Marcela Tiboni. Para nós foi um prazer poder conversar um pouco sobre sua experiência, seu livro e também suas percepções. Nós da Gestar, trabalhamos para que a saúde seja cada vez mais inclusiva e possamos ter sempre ao nosso lado profissionais competentes, atualizados e acolhedores, para dessa maneira colaborarmos para a mudança que é necessária.




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