Autocuidado materno
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Autocuidado materno

Quando o bebê nasce uma série de modificações a nível cerebral ocorre para que essa mãe se volte para a atividade primordial, que é a atenção principal às necessidades do bebê em um nível tão íntimo e visceral quanto o que existia quando ele ainda estava em seu ventre.

Ele é ainda parte dela mesma, e se manterá assim em uma perspectiva muito intensa por um bom tempo.


Por sua vez esse bebê é tão frágil, e demanda toda atenção e cuidados o tempo todo. Ele necessita do alimento, da voz, do olhar, do cheiro, da temperatura que vem de sua mãe para que o seu desenvolvimento se dê de forma saudável.


Mas e a mãe? Ela sente que ao cuidar do bebê ela cuida do que é mais precioso e frágil dela nesse momento. E não há nada de errado com isso. Entende?! Ao contrário, é necessário, fundamental e compõe o processo de vinculação da relação mãe-bebê.

Porque eu estou falando isso?


Entendo que é fundamental que uma mãe compreenda que todo cuidado que ela sente que precisa dar a seu bebê é de fato justificado, exaustivo e inquestionável. Ao final principalmente dos três primeiros meses uma mãe tem a sensação que sobreviveu a uma batalha. E os dias continuarão se seguindo bastante desafiadores.


A amamentação, por exemplo, é uma frente que vai requerer um tanto grande de energia e empenho. Me lembro de na minha primeira filha pedir ao pediatra na conversa de alta da maternidade para me dizer a hora que eu deveria amamentar, quanto tempo e o que eu podia dar caso ela chorasse sem parar, ou não conseguisse mamar; como já tinha acontecido na primeira noite. Sim! Eu não sabia de nada mesmo... Pensava que resolveria assim.


Saí de lá com a receita da fórmula e alguma ideia sobre a periodicidade que deveria amamentar. Noites seguidas sem dormir, mama ferida, exaustão. Na segunda semana até tentei que ela tomasse um complemento. Mas o resultado foi o mesmo. Pequenos cochilos e muito colo. Até que a gente fosse se ajustando, mama curando, apojadura, sem cronômetro, mas com muita relação entre nós, e a amamentação foi ficando cada vez mais fluida. Mas essa era só uma primeira vitória, de muitas outras.


Vou seguir aqui nomeando as trincheiras sem me prender a detalhar, pois não é meu objeto aqui: privação de sono, cólicas, refluxos, vacinas, saltos de desenvolvimento, angústia de separação, nascimento dos dentes, sustentar a cabeça, rolar, arrastar, sentar, introdução alimentar, volta ao trabalho, adaptação na creche ou com um outro cuidador, engatinhar, andar, falar...


Isso porque eu comecei aqui falando sobre os desafios após a chegada do bebê, e hoje falamos e ouvimos muitas referências a importância dos 1000 dias e o desenvolvimento saudável do bebê. Então, toda essa jornada já havia começado bem antes, desde a gestação.


Mas eu quero pensar os 1000 dias agora também sobre o contexto da mulher que se torna mãe. Nesse contexto a gente entende que do ponto de vista psicodinâmico, o período gravídico puerperal é sem dúvidas um momento de profundas transformações no que diz respeito ao ciclo vital da mulher. Ela, via de regra, vai viver um de seus mais intensos mergulhos em si, suas verdades, sua forma de entender a vida, a si mesma, as suas relações.


O que quero dizer, é que também dentro dessa mãe, dessa mulher, uma série de batalhas estão sendo travadas para que ela possa passar a se reconhecer na vida após a chegada desse novo filho. Enquanto esse bebê crescer demandando um cuidado de vinte e quatro horas de sua mãe, essa mulher também vive uma metamorfose para tornar-se agora mãe. E o seu corpo? Ah sim! O tempo de puerpério, que é numa perspectiva fisiológica, o período após o parto em que o corpo leva para retornar ao estado de antes da gestação, vem sendo questionada. Antes estimado de quarenta dias começa a ser considerado de até dois anos. Eu arrisco aqui uma pergunta: O corpo ou a mulher voltam a ser como eram antes da gravidez?


Então, diante dessa realidade, quem cuida da mãe?

Em uma rotina ainda tradicional de pós parto, que é o que a grande maioria das mulheres tem acesso, no primeiro mês a mulher terá uma ou duas visitas ao obstetra, para retirar pontos, e outra para revisão. Vai retornar após um ano para as consultas anuais preventivas, mas não é nada incomum que muitas ainda não voltem nesse período.

Em casa todas as atenções estão voltadas para o bebê e tudo o que diz respeito a ele. As visitas, a família, a rotina. Sobra muito pouco ou quase nada para essa recém mãe, nascida ou ainda em processo de gestação. Porque ela ainda olha para seu filho com um tanto de surpresa e tenta entender como tudo aconteceu tão rápido. A ficha vai caindo bem aos poucos.


Vale também contextualizar essa experiência em dois pontos importantes: no que diz respeito ao momento histórico e como a sociedade se organiza em torno da chegada de um bebê.


Vim discorrendo até agora para te ajudar a compreender que o bebê chega também na vida de uma mulher que está em processo de (re)nascimento e profundas transformações. Eu compreendo que isso se dê na família, o companheiro ou companheira, avôs, tios, irmãos, também estão incluídos no processo. Mas aqui coloco luz a relação da mãe com o bebê e não é por acaso. É sim, porque em nossa sociedade ela ainda é considerada, sozinha, a grande responsável pelos cuidados com esse bebê.


Quando existe um companheiro ou companheira, este irá retornar ao trabalho logo após a pequena licença, e será a mãe quem ficará se havendo com o bebê, a casa, outros filhos e tudo mais.


A pandemia expôs e elevou a um grau máximo uma solidão que já era vivida pela forma como nossa sociedade se organiza em torno do nascimento. Vivemos cada vez mais recolhidos a nossa própria intimidade em unidades familiares cada vez mais solitárias.

Uma mãe de primeira viagem muitas vezes nunca pegou um bebê recém nascido no colo porque na contemporaneidade as mães com seus bebês foram separadas de um certo convívio solidário que estabelecia grandes grupos familiares de convivência em que as mulheres cuidavam de si, a tia, a avó, a irmã, e iam cuidando juntas ali dos seus bebês.

Uma certa arrogância e assepsia parece ter tomado conta do puerpério, e da primeira infância em algumas casas, e o preço é pago por essa mãe. Há uma limitada rede de solidariedade para os cuidados com essa dupla: a mãe e o bebê; e uma menor ainda para que a mãe seja cuidada. Mas, paradoxalmente, exige-se que ela dê conta de tudo que um bebê precisa.


Paralelo a isso, o mercado, que não é nada ingênuo, saca esse nicho e vende cuidado. Um cuidado que muitas vezes não se tem acesso, ou pela rotina, ou por condições financeiras. E aí o processo de culpabilização fica maior ainda.


Quando trabalho a perspectiva do autocuidado materno com as gestantes, puérperas e mães que cuido, eu sempre acho importante fazer esse percurso que traçamos aqui.


1 – O bebê necessita mesmo de todos os cuidados da mãe, e a mãe se organiza física e mentalmente para disponibilizar esse cuidado.


2 – A mulher-mãe também vive um momento de profunda transformação e carece de cuidados.


3 – Em nossa sociedade a mãe é a principal cuidadora, na maioria das vezes sem rede de apoio em uma construção de suposição que ela deve dar conta sozinha.


4 – Há um mercado de cuidados que essa mulher não tem acesso, na maioria das vezes.

Assim, começamos a entender que o autocuidado materno fala de uma construção para a mulher, dentro daquela experiência de maternagem. Em um primeiro passo será crucial rever a suposta ideia de que uma mãe é tudo que o bebê precisa e que ela precisa dar conta dele sozinha.


Na relação com o companheiro ou companheira é o primeiro lugar a se experimentar essa superação. Me lembro de uma puérpera que cuidei, muito queixosa de exaustão; que não conseguia tomar banho e comer, mas que tinha um companheiro presente. Quando fomos ouvindo, ela pôde falar de se sentir tão responsável que quando o pai ficava com o bebê para que ela tomasse banho, ela o fazia às pressas e com os ouvidos ligados a qualquer som que viesse da dupla para que ela logo fosse estar novamente com a criança. O que se intensificava a nível máximo com qualquer outra pessoa da família.


A primeira vez que ela pôde vir a sessão presencial, sem o bebê, foi aterrorizante para ela. Ela entendeu como estava conectada com o que poderia estar acontecendo e a certeza de que só ela poderia dar conta das demandas do bebê, que estava com o pai. Na sessão seguinte ela narra surpresa o fato de que tudo tinha corrido muito bem, e que ela sentia que não podia e não precisava dar conta de tudo, e que ela precisava permitir receber ajuda, e ser cuidada também.


Essa rede solidária, nem sempre está pronta, as vezes você vai precisar ir costurando, eu diria que na maioria das vezes. Estar entre mães e seus bebês também é muito fortalecedor. Também é autocuidado. Ali você troca, você ouve, pode falar um pouco e a sensação é de que o ar passa mais fácil, que fica mais leve.


Outro ponto importante é reconhecer que você não vai dar conta de tudo, nunca. Mas que dar conta do possível para que você também seja vista e cuidada é fundamental para a saúde do seu bebê também.


Então, autocuidado materno é sobre fazer escolhas. Sobre deixar algo para depois e no lugar disso tomar um bom banho, comer com calma, caminhar, mesmo que com o bebê em algum lugar ao ar livre ou aquele famoso cochilo junto com o bebê.


Escolher um tempo para somente olhar para si, respirar e dizer: uau! Que louco isso tudo! E se sentir em paz, mesmo olhando a sua casa e não a reconhecendo como antes, mesmo olhando no espelho e descobrindo que tem uma mulher nova e diferente, mas que também tem alguns mesmos desejos de antes. O seu vínculo com essa nova mulher que você é também se constrói no cuidado. Ela vai precisar ser ninada, abraçada, e banhada de sua atenção e amor. Mas não tem fórmula ou receita. Esse caminho é individual e descoberto na prática diária de olhar generoso, descoberta e cuidado de si.


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